Álvaro Madeira Neto, Médico Sanitarista e Gestor em Saúde, Doutorando em Administração no Programa de Doutorado Profissional em Administração da FGV EAESP. Mestre em Gestão para Competitividade (MPGC) pela FGV EASP. Diretor Médico da Fundação Otília Correia Saraiva – FOCS. Coordenador do Curso de Medicina da UNILEÃO.
A gestão acadêmica vive uma tensão constante entre ideais democráticos e as contradições estruturais do tecido social brasileiro. No contexto pós-pandemia, as desigualdades ficaram ainda mais evidentes. Tratar a igualdade como “dar o mesmo tratamento a todos” tornou-se um equívoco técnico, ético e operacional. Em um país de disparidades profundas, presumir condições iguais para todos ignora realidades individuais, reforça exclusões históricas e compromete resultados institucionais.
Uma gestão baseada na promessa de isonomia fracassa ao oferecer o mesmo tratamento a sujeitos profundamente desiguais. A padronização de processos esconde fatores sociais que levam à exclusão e evasão. Não por acaso, um em cada cinco ingressantes de 2014 abandonou totalmente a universidade até 2019, segundo estudo do Inep (2021). Outro levantamento (Inep, 2023) mostrou que, no setor privado, a crise se traduz em 844 mil contratos inadimplentes do Fies. Entre os estudantes que permanecem, cotistas federais têm taxa de conclusão superior à dos não cotistas (51% contra 41%).
Como alertou Amartya Sen, assegurar recursos iguais para todos não basta. É preciso garantir condições reais para que exerçam sua liberdade. Na universidade isso é crítico: bibliografias exclusivamente em inglês ou com custo elevado são barreiras para muitos alunos. Avaliações em horários rígidos excluem estudantes trabalhadores ou cuidadores familiares. Oferecer traduções ou avaliações flexíveis são atos de equidade que preservam talentos.
A equidade, entretanto, não se limita a ações afirmativas voltadas a grupos historicamente excluídos. Mesmo alunos de escolas particulares ou contextos privilegiados podem ter vulnerabilidades ocultas, exigindo atenção especial da gestão acadêmica. Alunos com transtornos não diagnosticados, jovens vítimas de violência doméstica, ou estudantes em graves crises de saúde mental formam um contingente invisível e estão em desvantagem real. Um estudo de 2023, conduzido em oito universidades federais de Minas Gerais, constatou que 60 % dos estudantes apresentavam sintomas de ansiedade, reforçando a urgência do tema. Ignorar tais nuances sob o pretexto de que tiveram “oportunidades iguais” perpetua uma igualdade formal insensível às necessidades reais. A verdadeira equidade exige um diagnóstico contínuo das dificuldades enfrentadas pelos estudantes.
Essa reflexão é urgente também na área da saúde. No SUS, pacientes de regiões remotas carecem de exames básicos, enquanto grandes centros possuem equipamentos ociosos. Na academia, recursos podem igualmente estar mal distribuídos ou subutilizados. Para gestores de saúde e educação, equidade deve ser prática concreta, não retórica vazia. Na formação médica, isso significa preparar profissionais críticos e socialmente conscientes, tão importante quanto publicar artigos científicos. O sucesso de uma faculdade mede-se menos por troféus acadêmicos e mais pela capacidade de seus egressos impactarem positivamente comunidades carentes.
A busca pela equidade exige estratégia. Políticas compensatórias mal desenhadas podem cristalizar estigmas, como alerta Nancy Fraser. O risco não está apenas em focalizar excessivamente um grupo, mas também em ignorar outras formas de sofrimento acadêmico. Cabe ao gestor equilibrar sensibilidade e análise crítica, transformando a equidade em vantagem institucional. Isso significa reduzir evasão, melhorar indicadores e formar profissionais mais resilientes e adaptáveis, competências essenciais para o mercado da saúde no século XXI.
A verdadeira equidade não nasce de decretos, constrói-se ouvindo realidades locais e enfrentando privilégios. Edgar Morin afirma que lidar com a complexidade humana exige rejeitar fórmulas simplistas. No cotidiano universitário, isso significa adaptar ações ao contexto individual dos alunos. Quando gestores e docentes escutam ativamente estudantes em vulnerabilidade visível ou invisível, oferecendo suporte e ajustes curriculares, o ambiente torna-se inclusivo e produtivo.
Em uma época marcada por pressões mercadológicas sobre o ensino superior, é urgente colocar o humano acima do econômico. Isso não é altruísmo, mas eficiência estratégica. Gestores acadêmicos devem atuar como líderes enraizados na comunidade, ligando o projeto institucional às necessidades locais. Liderar com equidade exige abandonar certezas e cultivar o desconforto ético como motor da inovação gerencial. Só assim passaremos de reprodutores passivos de normas a agentes reais de transformação social.
A inclusão e a reflexão crítica não são apêndices da boa gestão; são seu núcleo. O gestor acadêmico consciente sabe que igualdade formal jamais justifica privilégios. Ajustar estratégias às diferenças reais, por meio de cotas, nivelamento acadêmico, apoio psicológico ou flexibilização curricular, promove justiça social e eficiência institucional. A pandemia revelou fraturas profundas no acesso à educação. Equidade, portanto, implica desconstruir privilégios e reconhecer que mesmo estudantes considerados “privilegiados” podem enfrentar barreiras invisíveis. Somente assim a liderança acadêmica abandona a reprodução automática de desigualdades.
Referências:
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Texto originalmente publicado no blog Gestão e Negócios do Estadão, uma parceria entre a FGV EAESP e o Estadão, reproduzido na íntegra com autorização.
Os artigos publicados na coluna Blog Gestão e Negócios refletem exclusivamente a opinião de seus autores, não representando, necessariamente, a visão da Fundação Getulio Vargas ou do jornal Estadão