Fernando Barrichelo, Aluno do Doutorado Profissional em Administração da FGV EAESP. Consultor da ReasonHub Consulting e autor dos livros Estratégias de Decisão e Reasoning Skills
O gerente abriu sua caixa de e-mails e encontrou uma mensagem inesperada. Um funcionário de nível médio, discreto e pouco participativo, havia enviado uma proposta de melhoria. O conteúdo surpreendia: era inovador, fazia sentido estratégico, estava bem estruturado e redigido com clareza, concisão e até certa elegância. Boa demais para ser ignorada — e boa demais para ser dele. O gerente franziu a testa. Conhecia aquele funcionário, não por juízo de valor, mas por convivência. Nunca o vira expressar esse tipo de pensamento. E, ainda mais, nunca o vira escrever daquela forma. Havia uma dissonância.
A primeira suspeita era clássica: teria ouvido essa ideia e se apropriado? Mas, logo surgiu uma dúvida mais contemporânea — e inquietante: teria sido o ChatGPT?
A questão deixava de ser apenas sobre a qualidade da proposta. Tornava-se um dilema ético e filosófico: o que fazer diante de uma boa ideia que, ao que tudo indica, não foi concebida por quem a apresenta? Antes da inteligência artificial, isso já ocorria. Era comum alguém capturar uma sugestão dita num corredor ou reunião e apresentá-la como sua. O desconforto vinha da percepção de injustiça: premiar quem se apropriou, silenciar quem criou. Mas com a IA, o desconforto é mais sutil. Não há vítima visível. A máquina não reivindica autoria, ainda assim, o incômodo persiste porque, no fundo, já não sabemos de onde vêm as ideias – e isso desafia uma crença antiga: a de que só tem valor o que é original e autenticamente humano.
Contudo, esse dilema, na verdade, só amplia uma questão mais antiga: o viés da autoridade. Em quase todo ambiente organizacional, ouvimos mais quem já tem legitimidade. Um médico é mais escutado ao falar de saúde do que um mecânico, assim como o mecânico é mais confiável para diagnosticar um carro. Dentro das empresas, vale o mesmo: profissionais de marketing são mais levados a sério ao falar de marketing do que alguém de RH. E, acima de tudo, predomina a lógica hierárquica – quando a ideia vem de um diretor, parece estratégica; vinda de um estagiário, soa como palpite.
Esse viés não é apenas injusto, ele é disfuncional. Cega os gestores para contribuições valiosas apenas porque vêm de lugares improváveis. É puro preconceito: a suposição de que pessoas só podem contribuir nos domínios que lhes foram formalmente atribuídos. A pergunta, então, persiste: uma ideia é boa ou má dependendo de quem a diz?
Com a chegada da IA, essa pergunta ganha novas camadas. Se a ideia é boa, mas foi gerada com apoio da inteligência artificial, ela deve ser descartada? Por quê? Por não vir de um humano? Por não ter sido concebida “sozinho”? Antes, o estagiário fora de sua área de atuação ainda era, às vezes, ouvido. Mas agora, se a proposta veio do ChatGPT – mesmo que com clareza, lógica e consistência – vamos ignorá-la? Fingir que não lemos? Isso corrói a confiança, esvazia a motivação e desestimula a criatividade. E reforça uma cultura onde ideias só são valorizadas se tiverem pedigree.
Nesse novo cenário, o papel do gestor precisa mudar. Já não se trata de vigiar autoria ou garantir pureza criativa. Trata-se de reconhecer boas sementes – venham de onde vierem – e criar condições para que floresçam. Isso inclui aceitar que usar IA com discernimento é, sim, uma habilidade. Fazer boas perguntas, interpretar respostas, adaptar ideias ao contexto – tudo isso exige inteligência. O colaborador que usa o ChatGPT e entrega algo útil e provocador não está trapaceando. Está apenas atuando com as ferramentas do seu tempo.
O que importa agora não é apenas ter ideias – é avançar com elas. Mesmo com apoio da IA, quem propõe algo relevante pode ser um ótimo iniciador – e isso tem valor. A pergunta não é “foi ele quem pensou?”, mas “ele consegue desenvolver isso?”. Se sim, temos um talento em formação. Se não, ainda assim há uma faísca – e faíscas, bem aproveitadas, acendem projetos.
No fim das contas, o dilema da autoria não é sobre tecnologia, é sobre maturidade. A inteligência artificial apenas evidencia o quanto ainda estamos presos a velhos critérios de reconhecimento. Precisamos de um novo pacto. Um pacto que valorize menos quem teve a ideia primeiro, e mais quem consegue transformá-la em algo concreto, útil e compartilhado.
O futuro do trabalho não será dos originais. Será dos integradores. E talvez a nova inteligência, no fundo, seja justamente essa: saber reconhecer quando a ideia é boa,independentemente de onde veio.
Texto originalmente publicado no blog Gestão e Negócios do Estadão, uma parceria entre a FGV EAESP e o Estadão, reproduzido na íntegra com autorização.
Os artigos publicados na coluna Blog Gestão e Negócios refletem exclusivamente a opinião de seus autores, não representando, necessariamente, a visão da Fundação Getulio Vargas ou do jornal Estadão