Fernando Barrichelo, aluno do Doutorado Profissional em Administração da FGV EAESP, Consultor e autor do livro Estratégias de Decisão.
Eliza Albuquerque, aluna do Doutorado Profissional em Administração da FGV EAESP, Executiva de RH.
O CEO decidiu que era hora de rever a estratégia. O mercado mudava rápido e a empresa precisava se preparar para os próximos anos. Para isso, organizou um encontro fora do escritório, longe das distrações do dia a dia. O cenário escolhido — a Serra da Mantiqueira — oferecia tranquilidade e um convite à reconexão com a natureza. Mas, na prática, os participantes passariam o tempo em uma sala de conferência com vista para as montanhas. Além da pauta estratégica, o evento também serviria para fortalecer os laços da equipe.
Um dos pontos centrais do encontro era a revisão do modelo de negócios, usando o Canvas, ferramenta criada por Alex Osterwalder em sua tese de doutorado e adotada por empresas no mundo inteiro. Para guiar a atividade, a empresa contratou um facilitador externo. Post-its foram distribuídos e a participação, incentivada. A expectativa era que a estrutura ajudasse a tornar a conversa mais produtiva.
Mas, à medida que as ideias surgiam, a dinâmica se mostrou mais difícil do que o previsto. Um a um, os participantes caíram em armadilhas comuns em discussões estratégicas: falácias argumentativas e falta de ambivalência.
O primeiro conflito veio quando o diretor financeiro propôs revisar os custos para garantir sustentabilidade. Antes que ele pudesse explicar os dados, o diretor de marketing rebateu com ironia, acusando-o de sempre querer cortar gastos. O foco saiu do argumento e foi para a pessoa. A conversa desviou para inovação, sem considerar a análise. Foi um caso clássico de falácia ad hominem, quando se ataca quem fala, em vez do que é dito.
Em seguida, a diretora de operações sugeriu investir mais em canais digitais para reduzir a dependência dos distribuidores físicos. A diretora comercial reagiu dizendo que isso levaria ao fechamento de lojas e demissões, embora ninguém tivesse proposto isso. A discussão se deslocou para um cenário exagerado, criado para ser facilmente criticado. Foi uma distorção do argumento original — um caso típico da falácia do espantalho, em que a ideia é deturpada para ser mais facilmente refutada.
Ao discutir fontes de receita, o CEO sugeriu testar um modelo de assinaturas. A vice-presidente de estratégia apoiou a ideia citando uma empresa de referência. Segundo ela, se funcionava lá, poderia funcionar ali também. Mas ninguém questionou se os contextos eram comparáveis. A decisão se apoiou na reputação de quem já adotou o modelo, sem avaliar as diferenças do caso. Foi um exemplo claro de falácia do apelo à autoridade, em que se aceita uma proposta apenas porque foi adotada por alguém considerado bem-sucedido.
Na hora de falar sobre crescimento, a equipe se dividiu: parte queria expandir para novos mercados, parte preferia consolidar a base atual. Cada grupo defendeu sua proposta como a única viável, sem examinar os méritos e riscos de cada alternativa. O facilitador tentou provocar reflexão, mas a rigidez das posições falou mais alto. O silêncio que se seguiu mostrou a ausência de ambivalência — a capacidade de reconhecer que mais de uma abordagem pode fazer sentido ao mesmo tempo.
Ao final do dia, o Canvas estava completo. Mas o sentimento não era de conclusão. A ferramenta organizou a conversa, mas não garantiu que ela fosse racional nem produtiva. O encontro mostrou que frameworks ajudam a estruturar ideias, mas não evitam distorções e conflitos. A qualidade da estratégia depende menos da ferramenta usada e mais de como as pessoas discutem e analisam os caminhos possíveis.
O facilitador sabia que a discussão teria rendido mais se o grupo prestasse atenção à forma de argumentar. O CEO percebeu que, apesar do esforço para criar uma conversa estruturada, o verdadeiro desafio era outro: promover um ambiente onde decisões sejam tomadas com base em raciocínio crítico e colaboração genuína. Ferramentas como o Canvas são úteis. Mas, no fim, estratégia não nasce de um modelo. Ela nasce do modo como as pessoas pensam, discordam e decidem juntas.
Texto originalmente publicado no blog Gestão e Negócios do Estadão, uma parceria entre a FGV EAESP e o Estadão, reproduzido na íntegra com autorização.
Os artigos publicados na coluna Blog Gestão e Negócios refletem exclusivamente a opinião de seus autores, não representando, necessariamente, a visão da Fundação Getulio Vargas ou do jornal Estadão