Eliza Albuquerque, Aluna do Doutorado Profissional em Administração na FGV EAESP, especialista em Neurociência Organizacional e Executiva de Recursos Humanos.
Os avanços tecnológicos vêm transformando de forma acelerada o mundo do trabalho. O que antes se limitava à automação de tarefas e digitalização de processos agora alcança uma nova camada: a compreensão do próprio comportamento humano. Nesse cenário, a neurociência organizacional ganha força, oferecendo recursos para aprofundar o entendimento sobre liderança, tomada de decisão, estresse e engajamento nas empresas.
No campo científico, esses avanços representam um salto significativo. Tecnologias como o eletroencefalograma (EEG), a ressonância magnética funcional (fMRI) e biossensores vestíveis permitem mapear, em tempo real, estados mentais e emocionais. A partir desses dados, pesquisadores conseguem identificar padrões invisíveis à observação direta ou aos questionários tradicionais, refinando o entendimento sobre como indivíduos e equipes reagem diante dos desafios cotidianos.
O ponto de inflexão, no entanto, ocorre quando essas tecnologias deixam os laboratórios e passam a ser incorporadas à rotina das organizações. Smartwatches e pulseiras fitness que captam sinais fisiológicos, conectados a plataformas analíticas com algoritmos de interpretação emocional, estão sendo usados para medir estresse, atenção e engajamento em reuniões, treinamentos e interações do dia a dia. A promessa é sedutora: ambientes mais produtivos, decisões mais bem embasadas e profissionais mais equilibrados.
Mais do que uma tendência, essa nova fronteira tecnológica parece oferecer oportunidades reais para tornar os ambientes corporativos mais justos, saudáveis e emocionalmente inteligentes. Ao iluminar aspectos antes ocultos da experiência humana no trabalho, a neurociência aplicada pode ampliar o autoconhecimento, qualificar a tomada de decisão e inspirar práticas que conciliem desempenho com bem-estar.
Na prática, porém, a história é mais complexa.
Monitorar emoções, fadiga e níveis de concentração com base em dados fisiológicos pode soar inovador, mas levanta dilemas sensíveis. Afinal, o que se faz com esses dados? Quem os interpreta? O profissional tem liberdade real para recusar esse tipo de monitoramento sem sofrer consequências?
Há riscos concretos de que métricas cerebrais passem a orientar decisões sobre promoções, demissões ou alocação de tarefas. Além disso, a subjetividade e a profundidade inconsciente desses dados tornam sua interpretação um terreno instável — propenso a vieses, distorções e usos inadequados. A linha entre cuidado e controle tornar-se perigosamente tênue.
A privacidade mental é um direito fundamental — e deve ser tratada como tal. Pensamentos, emoções e estados internos pertencem a um território inalienável da experiência humana, base da nossa autonomia, dignidade e liberdade. Permitir o acesso a esse nível de informação vai muito além de aceitar termos de uso ou assinar formulários de consentimento. No contexto corporativo, onde relações de poder nem sempre são simétricas, o risco de que dados mentais sejam convertidos em ferramentas de controle é real e crescente. Em vez de promover o bem-estar, sua má utilização pode aprofundar desigualdades, reforçar vieses e reduzir indivíduos a métricas cognitivas manipuláveis. Por isso, essa discussão precisa ser pautada com ainda mais rigor ético do que aquele aplicado à proteção de qualquer outro dado sensível — pois estamos falando do que há de mais íntimo e vulnerável no ser humano.
Diante desse cenário, é urgente que as empresas reflitam não apenas se devem adotar tais tecnologias, mas por que e como fazê-lo. Para quais finalidades? Quem terá acesso aos dados? Haverá profissionais capacitados para interpretá-los corretamente? Que mecanismos garantirão o consentimento genuíno e a liberdade dos trabalhadores?
A neurociência pode, sim, contribuir para ambientes de trabalho mais humanos. Mas isso só acontecerá se for usada com responsabilidade, transparência e limites bem definidos. O fascínio pela inovação não pode obscurecer valores essenciais como a autonomia, a dignidade e a privacidade. A mente humana não é território neutro — e não deve ser tratada como mais um dado a ser minerado.
Texto originalmente publicado no blog Gestão e Negócios do Estadão, uma parceria entre a FGV EAESP e o Estadão, reproduzido na íntegra com autorização.
Os artigos publicados na coluna Blog Gestão e Negócios refletem exclusivamente a opinião de seus autores, não representando, necessariamente, a visão da Fundação Getulio Vargas ou do jornal Estadão