Por Paulo Sandroni, Professor da FGV EAESP (paulo.sandroni@fgv.br)
Herança é a palavra que denota riqueza obtida na maciota. Mas, nem sempre é assim. Quando se trata do legado de um governo para outro, o significado pode ser bem diferente. No nosso caso atual, a palavra “maldita”, completando a expressão, encaixa-se de maneira admirável. O próximo governo (seja qual for) receberá do anterior grande desequilíbrio fiscal, inflação elevada, taxa de juros idem e enorme desconfiança dos investidores, sejam eles tupiniquins ou tupinambás.
Taxa Selic rondando os 14% e tornando mais cara a carregação da dívida pública, piruetas tributárias reduzindo receitas e inflação de dois dígitos provocam desanimo nos investidores. O tormento dos mais pobres, cujos filhos vão dormir com fome, desenha uma crise social de grande porte. O desemprego é mau conselheiro.
Há, no entanto, uma possibilidade de mitigar esse estado lamentável no qual nos encontramos e que pode se agravar no ano entrante. Sabemos que a retomada do crescimento econômico depende dos investimentos, mas na ausência destes os estímulos dados ao consumo podem representar um motorzinho de arranque que, associado a outros fatores, induzem o dinheiro empoçado a sair da toca. Trata-se de um empurrão de folego curto, é verdade, representado pela extensão do Auxílio Brasil (Bolsa Família) para R$ 600,00 e sua permanência a partir de 2023, promessa de todos os(as) candidatos(as) à Presidência da República, com um deles, inclusive, aumentando o valor do benefício.
Embora esse aumento, aprovado em julho de 2022 por motivos eleitoreiros (quando tem gente passando fome a motivação é o que menos importa), seja um dos responsáveis pelo desequilíbrio fiscal, se for mantido no ano entrante, os bilhões de reais retornarão à economia na forma de consumo solvente, uma vez que estômagos vazios são incompatíveis com entesouramento. É claro, haverá uma pressão inflacionária, em especial por causa da maior demanda por produtos essenciais, principalmente os alimentos. Mas a questão é como viabilizar tal pagamento sem desequilibrar ainda mais as contas públicas, como acontece agora. Em outras palavras, de que modo garantir tais recursos de forma orgânica, ou seja, sem aumentar o déficit e/ou remanejar recursos orçamentários (reduzindo-os) que amparam outros setores, como a educação e a saúde?
Lanço aqui uma proposta para que esse pagamento de R$ 600, isto é, os R$ 200 adicionais aos R$ 400 já assegurados, prolongue-se durante 2023 e seja financiado por contribuições dos mais ricos enquanto se discute uma reforma tributária que o contemple de forma estruturada. Trata-se do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) (pessoas físicas) considerado não como obrigação (sim, sei que é uma contradição chamar de imposto), mas como contribuição voluntária dos possuidores de grande patrimônio. A propósito, alguns candidatos à Presidência da República e governos estaduais declaram possuir patrimônio superior a R$ 100. Contribuir com R$ 1 milhão faria para seus doadores alguma diferença?
Tais recursos seriam carimbados, etiquetados e usados exclusivamente para o pagamento dessa ajuda. O grupo de pagadores seria identificado e informado quanto pagariam se houvesse um imposto aprovado que tornasse o desembolso obrigatório; se o pagamento deixasse de ser feito, não haveria qualquer consequência jurídica.
Do ponto de vista do crescimento econômico, ele seria encarado como investimento: o desequilíbrio fiscal seria evitado, ou pelo menos atenuado, a confiança dos investidores recuperada e, no médio prazo, suas aplicações proporcionariam o crescimento da economia e a expansão dos lucros; o retorno do investido na contribuição aos mais pobres poderia ser compensador. Em suma, um bom negócio. Essa proposta foge das medidas usuais e tem grande dose de ineditismo, mas pode ser exitosa com a vantagem de demonstrar que os desejos de solidariedade manifestado pelos mais ricos não são da boca para fora. Afinal para aqueles que pensam estrategicamente é um investimento com grande potencial de retorno, embora não no plano imediato.