O que acontece quando a própria lei, criada para garantir direitos e proteger a democracia, vira arma em disputas políticas? Essa foi a pergunta que guiou um estudo realizado por pesquisadoras da FGV EAESP em parceria com colegas de outras instituições. Em um contexto de retrocesso democrático, como ocorreu no Brasil nos últimos anos, leis e gestão não são apenas instrumentos de gestão pública: eles se tornam o campo de batalha central entre políticos e servidores públicos.
A pesquisa foi conduzida por Gabriela Lotta (FGV EAESP), em conjunto com Iana Lima (FGV Direito), Mariana Costa Silveira, Michelle Fernandez, João Pedote e Olívia Guaranha, e publicada na revista internacional Perspectives on Public Management and Governance. Para entender o fenômeno, os autores realizaram 164 entrevistas com servidores públicos federais de nível médio e alto entre 2021 e 2022. Sendo assim, o objetivo foi analisar como eles reagiram às pressões políticas e de que forma tanto políticos quanto servidores usaram a lei como estratégia em um cenário de enfraquecimento democrático.
As leis e gestão como campo de disputa
O estudo mostra que, em períodos de instabilidade, a lei – compreendida em termos amplos – passa a ser usada de forma ativa e estratégica. De um lado, políticos autoritários tentam flexibilizar, reinterpretar ou até violar regras para abrir espaço a seus projetos, muitas vezes em nome de uma “gestão mais ágil”. De outro, servidores recorrem às mesmas regras para se proteger, sustentar políticas públicas e evitar retrocessos institucionais.
A pesquisa identificou diversas estratégias e dinâmicas nesse “cabo de guerra”:
- Mudar a lei: políticos propõem novas regras para ganhar legitimidade, enquanto servidores defendem ajustes que garantam sua autonomia profissional.
- Violar a lei: políticos burlam normas para acelerar decisões; servidores, em alguns casos, descumprem ordens hierárquicas para preservar políticas públicas e o estado democrático de direito.
- Desvirtuar a lei: ambos reinterpretam normas ambíguas a seu favor, o que frequentemente leva à judicialização.
- Acionar a Justiça: recorrer aos tribunais se tornou uma prática comum para legitimar ações e contestar situações percebidas como abusos.
- Ameaçar os “oponentes”: políticos ameaçam a mobilização de sanções administrativas para intimidar servidores e estes buscam se manifestar publicamente em relação a possíveis ilegalidades e riscos de descumprimento de regras.
- Recusar atividades ilegais: servidores públicos, sobretudo, usam a recusa como forma de resistência e proteção de instituições democráticas.
Conclusões e implicações
Por fim, o estudo conclui que a lei e os instrumentos normativos, frequentemente vistos como um obstáculo à boa gestão, podem ser justamente o contrário em contextos de retrocesso democrático. Nessas circunstâncias, tornam-se a principal arma de resistência e de proteção de instituições democráticas. A pesquisa mostra ainda que políticos e servidores atuam de forma relacional, aprendendo e adaptando suas estratégias conforme o jogo político avança.
Portanto, não existe um simples dilema entre “lei” e “gestão”. O que existe é uma disputa constante sobre o uso e a aplicação da lei. Esse cabo de guerra, embora marcado por tensões, é também o que garante que a administração pública continue desempenhando um papel essencial: proteger a democracia e os direitos dos cidadãos.
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