Por Cibele Franzese
Na última quinta-feira, 03/09, o governo federal encaminhou ao Congresso Nacional uma Proposta de Emenda Constitucional sobre a Reforma Administrativa. É difícil obter unanimidade na opinião pública, mas lendo as opiniões publicadas o texto parece ter conseguido desagradar a quase todos. Vamos discutir o porquê.
A questão preliminar é alertar que esse é um tema de difícil debate. É um assunto árido e cheio de nuances jurídicas e administrativas que não são de simples entendimento. Logo, o problema pode ser facilmente reposicionado na agenda pública observando-o de maneira fragmentada, ou simplesmente privilegiando determinado ângulo em detrimento de outro. Aqui surge o primeiro problema: ausência de um diagnóstico comum sobre o porquê precisamos de um Reforma Administrativa.
Não só o Brasil, mas a América Latina, tem um histórico de propostas de reformas institucionais subordinadas à agenda de ajuste fiscal. Esse alinhamento nunca esteve tão claro quanto no governo Bolsonaro, que extinguiu o Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão e subordinou as políticas de gestão de pessoas ao Ministério da Economia.
Nesse mesmo sentido, desde que o governo anunciou que enviaria uma Reforma tem dado sinais de que o objetivo principal seria o controle de gastos. A partir daí a mídia começou a aquecer o debate, iniciando uma verdadeira cruzada contra os servidores públicos “que ganham mais que os trabalhadores privados” e o quanto isso pesa nas contas públicas do país. Foram diversos artigos, em vários jornais, repetindo que empregamos menos pessoas no setor público que países da OCDE [1], porém nossos gastos em relação ao PIB são semelhantes ou maiores que os desses mesmos países [2]. Além disso, outras reportagens davam publicidade a super salários – normalmente de carreiras jurídicas ou ligadas à arrecadação no governo federal, membros do Ministério Público ou do Poder Judiciário – e generalizavam tal realidade como “serviço público”. Ao mesmo tempo o Ministro da Economia, em meio a uma indefinição sobre quando o projeto de lei seria ou não enviado ao Congresso – até então não sabíamos se seria uma PEC ou um PLC – dá uma declaração comparando os servidores públicos a “parasitas”. Criava-se então uma ideia geral de que o problema a ser atacado era: servidores ganham muito e não trabalham.
Enquanto esperavam o governo federal enviar sua proposta, o Congresso Nacional organizou uma Frente Parlamentar Mista para discutir a Reforma Administrativa. Coordenada pelo Deputado Tiago Mitraud (NOVOMG) a frente é composta de 14 deputados e dois senadores de 13 partidos políticos diferentes. Realizou 5 debates no final de junho deste ano, discutindo diferentes aspectos da reforma, abordando as questões fiscais acima mencionadas, mas indo além destas.
Os debates começaram muito amplos – tratando de desburocratização do Estado, digitalização, abertura e fechamento de empresas – mas foram cada vez mais afunilando para o tema de gestão de pessoas. Seja sob a forma de produtividade, reconhecimento dos “mais empenhados”, avaliação com curva forçada, remuneração variável, etc. – a gestão do desempenho esteve no centro das discussões. A restrição da estabilidade do servidor com a variação das modalidades de vínculo também apareceu como demanda mais de uma vez, resultando, portanto, em um debate mais plural do que o divulgado pela mídia.
Um ponto interessante foi um dos debates endereçados a discutir a situação dos estados e municípios com a presença do presidente do Conselho Estadual dos Secretários de Administração dos Estados – CONSAD, o Secretário de Planejamento e Gestão de Alagoas Fabrício Santos. Os estados e municípios empregam hoje 90% dos servidores públicos do país, que são responsáveis pela oferta dos principais serviços prestados à população – saúde, educação e segurança pública – e seus salários são, em média, muito menores que os salários dos servidores públicos federais (as médias do servidores federais, estaduais e municipais são, respectivamente: R$9.186,29; R$5040,59; R$2865,51, conforme pesquisa do Ipea, 2019 [3]). São atores, portanto, que precisam ser ouvidos nesta discussão.
Ao final, os debates da Frente trouxeram especialistas e parlamentares para discutir, porém serviram mais para aquecer a discussão no Congresso Nacional, do que para construir um consenso sobre um diagnóstico acerca dos problemas a serem atacados pela reforma. Avançamos, mas continuamos sem um ponto de partida comum.
No dia 12/08, o Secretário Especial de Desburocratização do Ministério da Economia, Paulo Uebel, que estava à da elaboração do projeto, decide deixar o governo porque afirma que a Reforma Administrativa seria deixada apenas para 2021. E quando não se esperava mais que o projeto viesse, uma proposta de emenda constitucional é enviada ao Congresso Nacional.
Mas, será que essa Reforma resolve os principais problemas do serviço público brasileiro? Não é possível dizer, pois não há um consenso sobre quais são eles.
Se observarmos o diagnóstico divulgado pela mídia de que o Estado brasileiro é caro, seja porque a maioria dos servidores ganhariam mais que os trabalhadores privados, seja por que há super salários nas carreiras de Estado e em algumas carreiras do Poder Judiciário, o problema não foi endereçado. Primeiro porque a escolha da proposta foi não incidir sobre servidores atuais – logo não se pode esperar nenhum impacto orçamentário de curto prazo. Segundo porque o Executivo preferiu não tratar das carreiras melhor remuneradas que são também as carreiras de Estado e, quando tratou, as colocou ainda mais em um lugar intocável – e no que se refere aos membros dos outros Poderes, alegou falta de competência para fazê-lo. Nesse sentido, a pressão da mídia vale ser feita, porque esse último assunto ainda pode ser incluído no Congresso Nacional. Outro que ficou de fora foram as Forças Armadas, mas a última vez que tentaram incluí-las em uma reforma – lembremos da previdência – elas ganharam benefícios em vez de perder (acredito que não havia outra coisa a se esperar do governo Bolsonaro…)
No que se refere às questões de desempenho – bastante discutidas pela Frente Parlamentar – também não foram diretamente atendidas pela proposta, apenas lateralmente, ficando para lei ordinária e não mais lei complementar a regulamentação da possibilidade de demissão por desempenho que já havia sido inserida na Constituição pela Emenda 19/98. Essa regulamentação é importante, mas é apenas a pontinha de um iceberg. Para que funcione é preciso haver uma cultura de avaliação baseada em metas pactuadas com a equipe e com cada servidor, um processo transparente com feedbacks constantes, atrelados a capacitação e oportunidades de realocação do servidor nos quais a demissão é apenas a última das possibilidades à qual se recorre.
Isso só é possível com dirigentes de unidades que sejam de fato gestores de pessoas e tenham autonomia para fazê-lo. Nesse sentido, a seleção de dirigentes públicos é um assunto importante, que merece atenção. Não para ser ocupação privativa de membros de carreiras, mas para ter processos seletivos abertos e transparentes e que seus ocupantes se comprometam com resultados que possam ser acompanhados por toda a sociedade. Isso também não foi previsto na PEC, mas na apresentação feita durante a coletiva, os cargos de “liderança e assessoramento” estavam abaixo de uma coluna sob o título “ingresso por seleção simplificada” – podemos entender que isso virá em uma das regulamentações?
No que se refere à fragmentação das carreiras e à criação de carreiras por órgão que foi ocorrendo ao longo do tempo no governo federal, com cada Ministério criando, por exemplo, sua própria carreira administrativa, é importante dizer que juntar carreiras custa dinheiro. Ao fazê-lo é preciso equiparar salários dos servidores e, julgando-se pelas diferenças apresentadas pelos Secretários na coletiva – analista técnico do meio ambiente salário entre R$ 11 mil e R$ 15 mil e analista técnico administrativo PGPE entre R$ 6 mil e R$ 8 mil – a equiparação não sairia barato, considerando que deve se dar pelo maior salário, uma vez que nenhum servidor pode ter seu salário reduzido. Há soluções intermediárias como extinguir algumas carreiras e juntar apenas as mais próximas, mas sempre haverá o dispêndio de algum recurso. Confesso que, nesse momento em que vivemos, prefiro aplicar os recursos na discussão do auxílio emergencial ou transferir a estados e municípios para fortalecerem a linha de frente do SUS.
Considerando o que de fato foi enviado, a proposta do governo preferiu, a meu ver, priorizar duas coisas: a diversificação de vínculos e, portanto, o fim do regime jurídico único; e a extinção de uma série de benefícios como licença prêmio, promoção por tempo de serviço, férias com mais de 30 dias e aposentadoria compulsória como punição.
A primeira questão é bastante polêmica e como não vale para os servidores em exercício, não tem nenhum impacto orçamentário no curto e médio prazo – até mesmo porque ainda depende de regulamentação. São criados cinco tipos de vínculo: vínculo de experiência, cargo típico de estado, cargo por prazo indeterminado, vínculo de prazo determinado, e cargos de liderança e assessoramento. O primeiro é transitório para os dois seguintes, cujo acesso se dará por concurso público. O terceiro, por tempo determinado, terá acesso por processo seletivo simplificado, assim como os cargos de liderança e assessoramento, que substituem os cargos em comissão.
Vários países já têm mais de uma forma de vínculo. Isso dá flexibilidade para questões de mais longo prazo como mudanças na pirâmide demográfica, mudanças tecnológicas e para abrir caminho a novas demandas de serviços públicos que surgem e redução de outras que não são mais tão necessárias. Não deveria ser encarado uma perda de direitos dos servidores, mas como algo natural dentro de uma organização. Nesse sentido, o fato de ser apenas para novos concursados, facilita o entendimento: só presta o concurso quem realmente deseja ingressar nesse novo tipo de vínculo. Resta ao Estado conseguir ter outros atrativos além da estabilidade para conseguir atrair bons profissionais para virem trabalhar no setor público.
Mas, acredito que o maior impacto dessa medida se dará no nível subnacional, onde os múltiplos vínculos já são uma realidade, mas por caminhos muito tortuosos. Posso citar alguns exemplos: o uso indiscriminado de convênios ou do MROSC nas creches que muitas vezes disfarçam uma terceirização de área fim; a propagação de organizações sociais em diversas áreas fugindo de seu escopo de fomento para o qual ela foi criada, em regiões do país onde sequer há sociedade civil organizada disposta a assumir a gestão de equipamentos públicos; serviços sociais autônomos sem receita para fiscal para seu financiamento, ressuscitando uma legislação da década de 1940 para fazer uso do orçamento público com flexibilidade de organização privada; cooperativas de médicos atendendo, representando terceirização de área-fim; e funcionários temporários, em sua maioria professores, tendo seus contratos sucessivamente renovados, em cada local do país sendo remunerados de uma forma (pelo valor inicial da tabela, pelo salário mínimo, com ou sem direito ao INSS etc).
Ou seja, não é a PEC que propõe a diversificação de vínculos que vai precarizar o trabalho do servidor público – a precarização é real e já ocorre, burlando o regime jurídico único das mais variadas formas possíveis. O que é necessário é dar algum grau de uniformização e legalidade à multiplicidade de saídas que o gestor foi encontrando no dia a dia da gestão para conseguir entregar serviços dentro da rigidez que o regime hoje impõe.
A segunda frente que a PEC ataca é a extinção de uma lista de benefícios. Alguns deles são típicos do Judiciário, como férias superiores a 30 dias por ano e aposentadoria compulsória como punição; outros já foram extintos da administração federal há muitos anos, mas estão presentes em muitos estados e municípios como a licença prêmio, o adicional por tempo de serviço e a incorporação ao salário de valores referentes ao exercício de cargos e funções; já a supressão da progressão ou promoção baseada exclusivamente no tempo de serviço traz implicações para diversas carreiras das três esferas de governo e para os Três Poderes e vai no sentido de buscar premiar menos a experiência e senioridade, do que outros critérios como formação, prova ou avaliação de desempenho. Nesse sentido, seu impacto é mais para fora da Administração federal do que para dentro e serve muito os governos subnacionais que têm demonstrado grande dificuldade para aprovar, individualmente, reformas que diminuam o crescimento vegetativo da folha de pagamento e no caso da licença prêmio, acabam demandando o pagamento de horas-extra ou contratação de trabalhadores temporários para cobrir o desfalque.
Talvez essas mudanças pudessem ser aprovadas por Lei e não Emenda Constitucional. Mas para terem efeito nos estados e municípios, sem gerarem milhares de ações judiciais, esse é o caminho mais seguro. Lembro que há dificuldade nos estados e municípios para demitir empregados celetistas – o que deveria ser um assunto pacificado.
Haveria outra reforma possível? Certamente sim! Muitas outras. E a falta de um consenso sobre um diagnóstico está apontando para diversas outras prioridades. Eu, pessoalmente, não começaria pela reforma dos vínculos. É um assunto difícil e seu impacto não é imediato. A alta remuneração das carreiras de elite, a gestão do desempenho e a nomeação dos dirigentes seriam minhas escolhas. Mas, o fato de minhas escolhas não serem priorizadas faz com que eu seja contrária a discutir essa PEC como oportunidade de melhoria do sistema rígido que temos hoje? Não. Acredito que o Congresso Nacional pode inserir membros de outros Poderes na extinção de benefícios e essa extinção como proposta hoje já é positiva para estados e municípios. Da mesma forma, a pluralidade de vínculos, com a garantia de estabilidade para as carreiras de estado, com a manutenção do concurso público para tempo indeterminado, pode regularizar muito do que já vem ocorrendo como fuga do regime jurídico único nos diferentes governos brasileiros.
[1] cerca de 18% da mão de obra assalariada, próximo aos índices dos países latino – americanos, sendo que os países europeus ou da América do Norte empregam mais de 20% ou 30% e os nórdicos até mais de 40% (Banco Mundial. (2017) Um ajuste justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil.Volume I: síntese. Disponível em https://www.worldbank.org/pt/country/brazil/publication/brazil-expenditure-review-report> Acesso em 20 de agosto de 2020.)
[2] 13,7% em relação ao PIB e menos que isso na maior parte dos países da Europa ou América do Norte (Banco Mundial, 2017).
[3] Ipea. (2019). Atlas do Estado Brasileiro. Disponível em https://www.ipea.gov.br/atlasestado/>. Acesso em 15 de agosto de 2020.
*artigo originalmente publicado no blog Gestão, Política & Sociedade do “Estadão”.