Álvaro Madeira Neto, Médico Sanitarista e Gestor em Saúde. Doutorando em Administração no Programa de Doutorado Profissional em Administração da FGV EAESP. Mestre em Gestão para Competitividade (MPGC) da FGV EAESP
O ensino médico no Brasil tem experimentado um crescimento sem precedentes, impulsionado tanto por políticas públicas quanto pelo interesse crescente de grandes conglomerados educacionais e investidores estrangeiros.
O número de cursos de Medicina mais que dobrou na última década, mas a expansão tem sido marcada por uma crescente financeirização, na qual faculdades se tornaram ativos financeiros disputados por grandes grupos de capital aberto e fundos de investimento. Apenas em 2024, cinco grandes aquisições movimentaram cerca de R$ 2 bilhões no setor, envolvendo 1.200 novas vagas de Medicina. Estes grupos ampliaram seu portfólio comprando faculdades que obtiveram liminares para abrir cursos de Medicina fora do Programa Mais Médicos.
O alto valor dessas transações demonstra o apetite do mercado pela compra de vagas médicas, que são tratadas como ativos de grande rentabilidade. Atualmente, cada vaga de Medicina é negociada por cerca de R$ 1,2 milhão, sendo que há dois anos esse valor era o dobro. Essa dinâmica reflete não apenas a financeirização do ensino médico, mas também uma padronização educacional que muitas vezes não tem como foco a qualidade acadêmica nem a inserção dos cursos no Sistema Único de Saúde (SUS).
Diante desse cenário, o papel dos gestores acadêmicos comprometidos com a formação médica de qualidade torna-se ainda mais importante para garantir que essa expansão não resulte na degradação da formação profissional e na desvalorização do ensino médico no Brasil.
A gestão acadêmica de uma faculdade de Medicina não pode se limitar a um modelo financeiro. Para garantir um ensino de qualidade e a sustentabilidade pedagógica e financeira, é preciso haver um equilíbrio entre diferentes pilares, dentre os quais:
- Gestão pedagógica: essencial para assegurar currículos estruturados, metodologias pedagógicas inovadoras e ensino alinhado às necessidades da população.
- Gestão de pessoas: fundamental para a valorização e capacitação contínua de professores e colaboradores, bem como para a manutenção de um ambiente acadêmico saudável que estimule a aprendizagem.
- Gestão financeira: importante para a sustentabilidade institucional, mas jamais suficiente por si só. Quando uma faculdade de Medicina prioriza exclusivamente o lucro, a qualidade do ensino e a formação médica ficam comprometidas.
O avanço das fusões e aquisições no ensino médico tem feito com que algumas instituições adotem um modelo de gestão voltado para a eficiência econômica, deixando de lado o desenvolvimento acadêmico e o compromisso com a formação.
Faculdades compradas por grandes conglomerados, por vezes, passam por reestruturações que resultam na precarização dos contratos docentes e na adoção de metodologias de ensino de baixo custo, impactando diretamente a qualidade da formação médica.
Se, por um lado, essa consolidação poderia trazer ganhos de escala e otimização de recursos, por outro, essas fusões e aquisições são acompanhadas de riscos significativos. Quando empresas educacionais impõem padronizações administrativas e pedagógicas, retiram a autonomia acadêmica das instituições adquiridas e com isto podem reduzir a sustentabilidade pedagógica.
Esse fenômeno leva ao que Cartwright & Schoenberg (2006) chamam de “assassinato cultural”, quando uma fusão destrói a identidade institucional, forçando-a a adotar um modelo padronizado que não respeita a trajetória acadêmica, os métodos pedagógicos e a inserção regional da instituição .Quando fusões não são geridas por líderes acadêmicos qualificados, os cortes de custos afetam a formação dos alunos, resultando em médicos mal preparados e em um ensino cada vez mais distanciado da realidade do SUS.
O crescimento acelerado das faculdades de Medicina no Brasil pode representar tanto um avanço quanto um retrocesso. A diferença entre um e outro está na gestão acadêmica. Sem líderes preparados para conduzir esse processo, a expansão pode resultar em cursos precários, fusões mal planejadas e na degradação da qualidade da formação médica.
Sem um modelo de regulação mais rigoroso e uma gestão acadêmica que respeite a autonomia das instituições, o papel do corpo docente e o compromisso com a saúde pública, o ensino médico corre o risco de se tornar uma simples mercadoria, distante da sua real função social.
A expansão do ensino médico deve ser acompanhada de um compromisso inegociável com a qualidade. Sem isso, corremos o risco de formar uma geração de médicos despreparados para enfrentar os desafios do SUS e da saúde pública.
Texto originalmente publicado no blog Gestão e Negócios do Estadão, uma parceria entre a FGV EAESP e o Estadão, reproduzido na íntegra com autorização.
Os artigos publicados na coluna Blog Gestão e Negócios refletem exclusivamente a opinião de seus autores, não representando, necessariamente, a visão da Fundação Getulio Vargas ou do jornal Estadão