Em um mundo dominado pela incerteza e pela facilidade de acesso ao crédito, muitos consumidores se veem presos em uma trajetória que começa com pequenas dívidas e termina em colapso financeiro e emocional. O superendividamento – condição em que a pessoa não consegue mais arcar com suas obrigações financeiras básicas – se tornou um fenômeno crescente. Ele é agravado pelas dinâmicas econômicas pós-pandemia e pela normalização do crédito como solução para problemas cotidianos. Mas o que leva consumidores a perderem totalmente o controle sobre suas finanças (e sobre si mesmos)?
Essa questão é central no estudo “Da Ordem ao Caos: Como os Consumidores Perdem o Controle dos Riscos (e de Si Mesmos)”, publicado na prestigiada Journal of Consumer Research pelos pesquisadores Delane Botelho (FGV EAESP) e Júlio Leandro (Mackenzie; FGVcemif). A pesquisa adotou uma abordagem qualitativa com base em entrevistas em profundidade com 37 consumidores superendividados. Eles são atendidos por um programa público brasileiro de apoio ao endividado. O estudo incluiu também observação participante em eventos e reuniões com instituições envolvidas com o tema.
Como consumidores perdem o controle: a espiral do endividamento
Os resultados revelam que o superendividamento não é apenas uma falha financeira, mas um processo social e psicológico que desestabiliza a identidade dos consumidores. Inicialmente motivados por necessidades legítimas – como manter o padrão de vida, enfrentar emergências médicas ou lidar com perdas de renda – os indivíduos começam acessando o crédito com a ilusão de controle. Contudo, eventos inesperados e fatores agravantes impulsionam uma transição do que os autores chamam de “estágio de ordem” para o “estágio de caos”.
Essa transição acontece por meio de uma espiral descendente com riscos crescentes, em que as dívidas se acumulam, a capacidade de gerenciar riscos se perde e o sofrimento se intensifica. Portanto os consumidores, como descreve um entrevistado, sentem-se como “num tsunami, tentando escapar em vão”.
A análise identificou quatro dimensões principais nas narrativas dos superendividados:
- Abatimento emocional – sentimentos de culpa, vergonha e desespero constantes.
- Desfazendo o mundo – quebra das rotinas, relações familiares e da própria estrutura de vida.
- Vivendo na imediatez – foco absoluto no presente, sem capacidade de planejar o futuro.
- Subsistência ameaçada – comprometimento total da renda, gerando risco de fome, despejo e exclusão social.
Consequências para a identidade e o bem-estar
A condição de superendividado carrega forte estigma social no Brasil, especialmente por meio da ideia de “nome sujo”. Esse rótulo, mais que uma restrição financeira, representa perda de status, respeito e pertencimento. A pesquisa mostra que, nesse processo, os consumidores internalizam culpa e fracasso, mesmo quando o endividamento decorre de fatores externos, como crises econômicas ou emergências familiares.
Além disso, o estudo desafia a ideia dominante de que a gestão de riscos é uma responsabilidade exclusivamente individual. Ao contrário, revela como fatores estruturais e simbólicos – como a pressão moral pela solvência e a naturalização do crédito – contribuem para o agravamento da vulnerabilidade dos consumidores. Em vez de apenas responsabilizar os indivíduos, os autores propõem a necessidade de políticas públicas mais empáticas com o cidadão. Por fim, também recomendam educação financeira realista e estratégias de intervenção que levem em conta a complexidade do fenômeno.
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