Reserva de mercado de doses das vacinas garantida por países ricos irá intensificar as desigualdades globais, a despeito dos esforços da OMS para que a vacinação contra a Covid-19 alcance equitativamente as populações mais vulneráveis
A vacinação contra a Covid-19 já começou em países ricos, como Inglaterra e Estados Unidos. Algumas das nações com as menores rendas do globo, por sua vez, poderão contar com fundos de doação, que devem atender países na África e Ásia para obter acesso às vacinas. A países como o Brasil restam as iniciativas de colaboração internacional, como a Covax Facility, da Organização Mundial da Saúde (OMS); a produção de tecnologia própria; ou, ainda, acordos bilaterais com empresas estrangeiras.
Para Elize Massard da Fonseca, professora da FGV EAESP que estuda políticas de saúde, hoje o principal gargalo para o acesso à vacina é a sua produção. “Existe uma demanda global por vacinas contra a Covid-19, mas como os grandes desenvolvedores farão para entregar produtos para o mundo inteiro?”, indaga.
A diversificação dos tipos de vacina comprados ou produzidos tem sido uma das estratégias utilizadas por alguns países como forma de aumentar as chances de garantia de doses as suas populações. Países de alta renda, como alguns europeus, Estados Unidos, Austrália, Canadá e Japão podem apostar numa ampla estratégia de diversificação, porque têm capacidade de fazer reserva de mercado. “Esses países podem firmar compromisso de compra com vários fabricantes de vacina, já que têm recursos para isso”, explica Elize. O Brasil, que até agora já firmou acordos de transferência de tecnologia com três laboratórios internacionais — a AstraZeneca (“vacina de Oxford”), a Sinovac (Coronavac) e o Gamaleya (Sputnik) –, não é um desses casos.
Segundo a pesquisadora, o Brasil possui condições de criar suas próprias tecnologias de produção de vacinas e outros fármacos. Algumas iniciativas locais para o desenvolvimento de uma nova vacina contra a Covid-19, como as dos laboratórios dos pesquisadores Jorge Kalil, da USP (Universidade de São Paulo), e Gustavo Cabral, do Incor (Instituto do Coração), recebem recursos públicos para serem levadas adiante. Mas para que haja a criação e o domínio local de novas tecnologias para vacinas, como a desenvolvida pela Pfizer e BioNTech a partir de RNA mensageiro (RNAm,) por exemplo, falta ainda muito investimento. O Brasil não está, neste momento, em igual pé de competitividade com outros países desenvolvedores de vacinas contra o novo coronavírus.
Grandes investimentos também são necessários para a realização de acordos de compra e transferência de tecnologia de vacinas que ainda não estão prontas – e que, portanto, são caracterizados como investimentos de alto risco. A vacina desenvolvida pelo laboratório AstraZeneca em parceria com a Universidade de Oxford, do Reino Unido, por exemplo, ainda estava em fase de testes pré-clínicos quando o Ministério da Saúde do Brasil assinou o acordo, em setembro. Comprar um produto que ainda não existe traz uma série de implicações jurídicas e envolve muito dinheiro. De acordo com Elize, tais medidas são especialmente complicadas em países com tantas desigualdades como o Brasil, que já demanda cuidado extra na alocação de recursos.
Populações mais pobres, como as da África subsaariana, conseguem ter algum grau de acesso a esses produtos de saúde através de fundos de doações, como o do fundador o de Bill & Melinda Gates. De acordo com Elize, no caso do Brasil, vive-se o dilema de ser um país de renda média que “não é rico o suficiente para fazer grandes compras antecipadas de vacina, por conta do alto risco de investimento envolvido; ao mesmo tempo que não se qualifica para receber doações”.
Países com esse perfil têm que adotar estratégias criativas para ter acesso às vacinas. Muitos acabaram entrando no consórcio internacional Covax Facility, promovido pela OMS. A proposta é garantir o acesso justo e equitativo a vacinas contra a Covid-29 reunindo o poder de compra das economias participantes e fornecendo garantias de volume de doses de uma gama de vacinas candidatas promissoras. Assim, quando alguma dessas vacinas obtiver aprovação regulatória, sua venda será feita a custos reduzidos para os países participantes com melhores condições financeiras e doado para as nações com menores condições econômicas. Dessa forma, todos os países participantes do consórcio terão garantidas doses suficientes para vacinar 20% de sua população e nenhum dos países receberá mais doses até que todos tenham essa porcentagem cumprida.
Na prática, no entanto, países mais ricos têm feito acordos de compras unilaterais, como o que o Brasil está fazendo com a americana Pfizer, por exemplo. Ou então entram em estratégias de transferência de tecnologia, caso tenham capacidade de produção local, que é o caso dos acordos brasileiros com a AstraZeneca e com a Sinovac. O que está ocorrendo, portanto, é uma reserva de mercado, em que muitos países ficam à margem das negociações.
As próprias empresas também têm interesse em diversificar sua produção, realizando os chamados acordos de transferência de tecnologia. Nesse tipo de acordo, a companhia passa um conjunto de conhecimentos sobre o processo de fabricação da vacina, especialmente quando se está protegido por patente. Algumas empresas, como a Pfizer, não têm esse interesse na transferência. “Possivelmente por não quererem abrir mão da exclusividade de sua tecnologia, que é bastante inovadora”, explica Elize. Nesses casos, os acordos são de compra direta.
“O problema dos Estados Unidos e Reino Unido começarem a vacinar primeiro é que dá a impressão de que o resto do mundo está atrasado. Na minha opinião, isso é na verdade um retrato da desigualdade global. Esses países estão de certo modo à frente porque têm condição de fazer reserva de mercado, coisa que quase nenhum país do mundo pode agora”, conclui Elize.
Confira mais publicações de Elize Massard sobre o tema:
- “O jogo político da transferência de tecnologia para a vacina da Covid-19” (Agência Bori, out/2020)
- “The comparative politics of COVID-19: The need to understand government responses” (Global Public Health, jun/2020)
Por Laura Segovia Tercic