Um dos efeitos das crises é trazer à tona questões estruturais que, muitas vezes, deixamos escondidas e fingimos não ver. A invisibilidade dos profissionais da linha de frente da saúde é certamente uma destas questões estruturais. Em momentos de pandemia, é impossível não enxergar como estes profissionais, muitas vezes escondidos nos serviços públicos, são a essência do acesso a direitos e serviços. Mais do que nunca, para enfrentar uma pandemia, dependemos do trabalho destes profissionais. Governos importam sim, e os profissionais públicos que se dedicam a cuidar do bem comum são fundamentais.
Este é o caso, entre muitos outros, dos profissionais da enfermagem, talvez uma das categorias mais invisíveis durante a normalidade, mas que, agora, frente ao Covid-19, tem a chance de mostrar como é essencial.
As profissionais de enfermagem (85% da força de trabalho é formada por mulheres) são essenciais no cotidiano para garantir o padrão de atendimento de um hospital, das clínicas e dos serviços ambulatoriais de saúde. Elas estão espalhadas em hospitais públicos e privados; em clínicas, unidades de saúde e enfermarias; trabalham como formiguinha para prover serviços que são, muitas vezes, invisíveis aos olhos da sociedade. Compõem um grande time de profissionais que, embora em números muito maiores, tende a ficar na sombra da figura do médico (para se ter uma ideia, no Brasil há um médico para cada 5 profissionais de enfermagem).
Dados do conselho federal de enfermagem apontam que existem atualmente mais de 2.3 milhões de profissionais de enfermagem no Brasil. Deste total, cerca de 415 mil são enfermeiras; 558 mil são técnicos de enfermagem e 1.3 milhões são auxiliares de enfermagem. Quase metade deste contingente trabalha na saúde pública, dando vida ao SUS, que emprega cerca de 270 mil enfermeiras e 792 mil técnicos e auxiliares. Estes profissionais estão distribuídos em municípios, governos estaduais e unidades do governo federal.
Cerca de 51% deles trabalha em unidades hospitalares e 20% em unidades básicas de saúde. Além de realizarem atividades de cuidado em saúde, parte destas profissionais também realizam atividades de gestão. Na Estratégia de Saúde da Família, que é a maior política de atenção primária à saúde do Brasil e uma das mais reconhecidas do mundo, cabe às enfermeiras coordenarem as equipes. Assim, além de cuidar diretamente da população, cabe às enfermeiras garantir que as equipes de saúde da família realizem acompanhamento domiciliar, visitem prioridades, atendam às demandas da população e garantam serviços contínuos de prevenção e promoção à saúde. Além disso, em pequenos municípios, onde há escassez de médicos, estruturam seus serviços de atenção primária dando centralidade à atuação das enfermeiras, que são bastante resolutivas neste nível de atenção.
Ao mesmo tempo em que estas profissionais se mostram muito relevantes para o funcionamento dos serviços de saúde, elas estão muitas vezes sujeitas a condições precárias e vulneráveis: salários mais baixos, contratos precários, falta de recursos básicos para realizarem suas funções, pressão para alcançarem metas impossíveis frente aos recursos disponíveis. Além disso, especialmente aquelas que atuam em unidades básicas de saúde, estão muitas vezes sujeitas a condições insalubres e precárias dos territórios onde atuam sem muitas vezes terem o respaldo governamental para sua própria proteção. O descaso com a área de saúde não é algo recente, o SUS por exemplo sofreu severos cortes: entre 2009 e 2020, com redução de 48 mil leitos neste período.
Frente à crise, fica mais evidente a nossa dependência, enquanto sociedade, das profissionais da enfermagem. Mas fica ainda mais evidente a situação de precariedade e vulnerabilidade à qual estão expostas. . Os dados mais atuais do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), de 11 de maio, mostram que há mais de 3.600 casos confirmados de profissionais de enfermagem infectados pelo novo Coronavírus em todo o país. Quase 13 mil estão em quarentena, 256 foram internados e quase 100 morreram devido ao Covid-19.
Um primeiro problema, o mais evidente, é a falta de equipamentos de proteção individual (EPI). Apesar de ter tido algumas semanas para se preparar para a crise, o Brasil não conseguiu antecipar a compra ou fabricação destes equipamentos, o que acabou expondo milhares de profissionais da saúde (e de outros serviços) a terem que trabalhar sem equipamentos adequados. Em meados de abril, o Cofen já havia recebido 5 mil denúncias sobre a falta de equipamentos de proteção para profissionais. Diariamente, chegam dezenas de relatos de profissionais trabalhando com equipamentos improvisados, fabricados em casa ou que não garantem a proteção necessária. A falta de equipamentos expõe os profissionais da saúde ao contágio da doença. Além de poderem se contaminar, estes profissionais acabam se transformando em potenciais vetores do vírus, podendo transmiti-lo tanto aos seus familiares como a outros pacientes que atendem.
E o Brasil não foi o único a se deparar com as falhas do seu sistema de saúde diante da pandemia. A escassez de EPIs e de medicamentos essenciais foi registrada em muitos países ao redor do mundo. Nos EUA, por exemplo, há inúmeros relatos de profissionais de saúde que foram demitidos em meio à crise do Covid-19 por denunciar suas condições de trabalho preocupantes à imprensa e aos órgãos de controle. Já sabemos, inclusive, que em alguns países cerca de 10% dos infectados eram profissionais de saúde; são já milhares de casos de mortes de profissionais de saúde pelo mundo em decorrência da doença. Além disso, um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) de abril, estima que haja ainda um déficit global de cerca de quase 6 milhões de profissionais de enfermagem. No caso do Brasil, a densidade de enfermeiros em relação à população fica acima da média mundial e é equivalente a de alguns países desenvolvidos.
Em pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB) sobre os impactos da Covid-19 nos profissionais da linha de frente de diversos serviços, conversamos com 200 profissionais da enfermagem. Destes, cerca de 48% afirmaram não terem recebido EPIs; 58% disseram não terem recebido treinamento ou formação para lidar com a doença. 53% deles apontaram não se sentirem preparados para atuarem neste momento. E 89% afirmaram estar com medo. Embora não possam ser estatisticamente generalizados, estes dados demonstram a vulnerabilidade à qual estes profissionais estão expostos: ao mesmo tempo em que precisam cuidar dos outros, se sentem com medo, expostos, pouco preparados e sem equipamentos.
Frente a esta realidade, cabe nos perguntarmos o que o Estado deveria fazer para dar respaldo a uma profissão tão central neste momento de crise. A distribuição de EPIs para profissionais de enfermagem de todos os níveis de atenção é o primeiro passo. Embora seja mais evidente a necessidade destes equipamentos para profissionais que atuam nos hospitais, eles são essenciais inclusive para quem está na atenção básica. Mesmo não atendendo diretamente casos de Covid-19, na atenção básica são realizadas as campanhas de vacinação para H1N1, continuidade de atendimento a pacientes crônicos e acompanhamento de pré-natal, por exemplo, atividades que expõem os profissionais a contato constante com pacientes.
Uma segunda medida urgente seria dar formação e treinamento adequados para que os profissionais estejam mais preparados para enfrentar a crise. Dados os limites de atividades presenciais, os governos poderiam criar materiais instrucionais virtuais, como pequenos vídeos, textos, etc.
Uma terceira medida é disponibilizar material informativo oficial para as profissionais poderem repassar e instruir a população. Essa é uma medida essencial principalmente na atenção básica, onde as equipes estão competindo constantemente com fake news que chegam aos pacientes.
Uma quarta medida seria realizar campanhas de valorização das profissionais da enfermagem. Embora tenha crescido o reconhecimento dos profissionais de saúde (com as palmas nas janelas, por exemplo), há diversos relatos de agressões sofridas por estes profissionais por parte da população que não entende a importância de seu serviço ou que tem medo de que eles sejam vetores de transmissão da doença.
Embora estas medidas pareçam mais urgentes agora em meio à pandemia, elas deveriam fazer parte de uma agenda permanente de fortalecimento das profissões de enfermagem. Disponibilizar equipamentos e recursos necessários; dar treinamento, prover com informações assertivas e fazer campanhas de valorização profissional deveriam ser elementos cotidianos da gestão dos serviços de saúde.
Durante momentos de crise como o que vivemos, os Governos tendem a ser mais eficientes, pois têm um objetivo claro a ser alcançado e fortes incentivos para não perder tempo com excesso de burocracia. A pandemia é uma oportunidade única para aprendizados. E, talvez, um dos centrais que possamos tirar disso tudo, é como ter profissionais de enfermagem valorizados, bem preparados e protegidos é um componente fundamental de uma sociedade saudável e mais igual. Que possamos fortalecer, proteger e agradecer, devidamente, a estas heroínas e heróis de quem tanto dependemos não só durante a pandemia, mas em todos os momentos.
Gabriela Lotta é professora de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas, coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB- FGV EAESP) e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM)
Eloy Oliveira é mestre em Administração Pública pela Universidade de Columbia (EUA), bacharel em Direito pela UFMG e diretor zxecutivo da República.org
* artigo publicado originalmente no blog Gestão, Política & Sociedade