Álvaro Madeira Neto, Médico Sanitarista e Gestor em Saúde, Doutorando em Administração no Programa de Doutorado Profissional em Administração da FGV EAESP. Mestre em Gestão para Competitividade (MPGC) pela FGV EASP. Diretor Médico da Fundação Otília Correia Saraiva – FOCS. Coordenador do Curso de Medicina da UNILEÃO.
O avanço da inteligência artificial (IA) na medicina representa um marco técnico sem precedentes. Contudo, sob a superfície do entusiasmo tecnológico, surge um paradoxo inquietante: a IA, embora apresentada como ferramenta objetiva, pode amplificar preconceitos e desigualdades que atravessam, há séculos, as estruturas sociais.
Um artigo publicado em The Lancet Digital Health (2025), revela que o uso de dados raciais e étnicos em algoritmos de saúde não é, por si só, solução para iniquidades históricas. Pelo contrário, quando esses dados são interpretados a partir de lógicas mercadológicas ou simplificadas, podem intensificar injustiças profundas. O estudo de Obermeyer (2019), por exemplo, evidenciou que algoritmos usados por seguradoras nos Estados Unidos subestimaram em até 50% a necessidade de cuidado de pacientes negros, pois utilizavam o “custo com saúde” como indicador de demanda.
Essa lógica não é um erro de cálculo, ela é o reflexo matematicamente sofisticado de desigualdades estruturais. O racismo estrutural, ao ser digitalizado, apenas muda de idioma. Agora, fala em códigos e decisões automatizadas.
No Brasil, essa engrenagem invisível também opera, mesmo nos marcos de um sistema público universal como o SUS. Um estudo publicado em The Lancet Global Health (2024), com base em mais de 120 mil casos de câncer de mama, revelou que mulheres negras têm 13% menos chance de sobreviver à doença em comparação com mulheres brancas, mesmo quando acessam os mesmos serviços de saúde.
A desigualdade não se limita ao acesso, mas atravessa todo o percurso do cuidado, com diagnósticos tardios e acolhimento clínico marcado por vieses implícitos. A dor dessas mulheres é amplificada pela desumanização institucional. As estruturas de cuidado, em vez de remediar desigualdades históricas, muitas vezes as sofisticam sob protocolos que invisibilizam identidades.
Segundo o IBGE, mais de 80% dos usuários do SUS se autodeclaram negros. Ainda assim, menos de 20% do corpo médico brasileiro é composto por pessoas negras. Esta não é uma coincidência estatística: é a tradução de séculos de exclusão da formação médica, da mobilidade social e da representação nas instituições de poder.
Infraestrutura e raça: quando a água tem cor
Mesmo os serviços considerados essenciais como o acesso à água potável, revelam a persistência do racismo estrutural em escala global. Em Flint, Michigan, mais de 100 mil pessoas, majoritariamente negras, foram expostas durante anos à água contaminada com chumbo. O caso, amplamente documentado, tornou-se símbolo de uma negligência institucional racializada.
Na França, mesmo com 99% de cobertura de saneamento, 77% dos assentamentos ciganos ainda vivem sem acesso à água potável.
Essas situações não são casos isolados. São expressões de como o racismo estrutural se manifesta na ausência: de saneamento, de políticas públicas efetivas, de escuta.
O Brasil e a desigualdade sanitária
No Brasil, a exclusão sanitária tem endereço, cor e classe. Segundo o SNIS (2022), mais de 33 milhões de pessoas vivem sem acesso à água tratada. Entre elas, estão principalmente indígenas, quilombolas, ribeirinhos e moradores das periferias urbanas.
A mortalidade infantil entre crianças indígenas é mais que o dobro da média nacional. A cobertura vacinal nas periferias das grandes cidades segue em queda. As políticas de saúde mental são marcadas por descontinuidade, e a assistência ao parto, profundamente desigual.
Tais indicadores são sintomas de uma racionalidade que, embora eficaz em planilhas, frequentemente falha na escuta sensível e no reconhecimento da pluralidade dos sujeitos do cuidado. O sistema opera com precisão técnica, mas sob uma lógica seletiva, que prioriza alguns e abandona os muitos.
Conclusão: saúde populacional é justiça racial em ação
No fim das contas, o que está em jogo não é apenas a eficácia de um sistema. É a própria noção de humanidade. A transformação estrutural não nasce de decisões solitárias. Exige mudança cultural profunda, e essa mudança precisa reconhecer que os mais vulnerabilizados devem estar no centro da equação sanitária.
A IA pode prever doenças, mas só consciência histórica pode prevenir injustiças. Tecnologia ajuda a salvar, mas só se estiver a serviço da vida. A justiça sanitária, esse horizonte ético que fundou o SUS, precisa ser radicalmente antirracista. De outra forma, não será justiça, nem tampouco, sanitária.
Texto originalmente publicado no blog Gestão e Negócios do Estadão, uma parceria entre a FGV EAESP e o Estadão, reproduzido na íntegra com autorização.
Os artigos publicados na coluna Blog Gestão e Negócios refletem exclusivamente a opinião de seus autores, não representando, necessariamente, a visão da Fundação Getulio Vargas ou do jornal Estadão